A cantiga de amor
O lirismo provençal foi certamente conhecido na Península Ibérica bastante cedo [...].
Poesia autóctone e poesia de imitação provençal são, pois, simultaneamente cultivadas nas cortes da Península e mutuamente se influenciam, ocorrendo frequentemente que a cantiga de amor galego-portuguesa apresente refrão e se aproxime da estrutura da poesia popular. No entanto, algo as distingue e as torna inconfundíveis: nas cantigas de amor é o homem que se dirige à amada ("senhor") a confessar os seus sentimentos; pelo contrário, nas cantigas de amigo, é uma rapariga que, enamorada e saudosa, recorda o amigo (namorado) ausente, tomando como confidente a mãe, as amigas e a Natureza. [...]
Mas os nossos poetas não se limitam a adaptar, por vezes, à estrutura típica da cantiga de amor, o ritmo e a vivacidade que caracterizam a cantiga de amigo; mesmo na cantiga de imitação provençal [...], a expressão do amor simplifica-se e o sentimento amoroso, não sendo um fingimento, humaniza-se e atinge um arrebatamento e um tom de sinceridade vivida [...].
De acordo com o nosso temperamento apaixonado e saudosista, a nossa cantiga de amor exprime a “coita” ou “cuita”, paixão infeliz, amor não correspondido que se torna obsessão, repetida em tom de queixa ou de súplica. Assim se cria uma monotonia expressiva, uma plangência que exprime o comprazimento na dor e que culmina com a aspiração a “morrer de amor”, um dos tópicos mais repetidos na cantiga de amor galego-portuguesa [...].
FERREIRA, Maria Ema Tarracha, 1998. “Introdução”, in Poesia e Prosa Medievais. 3.ª ed. Lisboa: Ulisseia (pp. 13-14) (1.ª ed.: 1981)
A cantiga de amor, afim quanto ao conteúdo da cantiga de amigo, pois ambas desenvolvem, o mais das vezes, o tema do amor não correspondido, distingue-se, no entanto, dela por uma mais acentuada aristocraticidade de tom e de forma. Geralmente estruturada como pedido de amor do poeta à dama ou como lamento pela indiferença e altiva distância dela, a cantiga de amor adota moldes poéticos e fórmulas lexicalizadas de ascendência provençal (por exemplo, a apóstrofe “mia senhor”, decalcada sobre o trovadoresco “midons”), mas dilui a sua intensidade expressiva, despersonalizando-os e estereotipando-os. [...]
O canto de amor, aqui, não se dirige a uma mulher real, exprimindo sentimentos reais que são a transposição amorosa dos sentimentos do vassalo pelo senhor feudal (admiração, devoção, fidelidade, desejo de ser admitido na sua intimidade), mas é dedicado a uma mulher abstrata (ou extremamente idealizada), objeto de “sentimentos” tópicos, rigidamente fixados em esquemas convencionais. Disto deriva quer a impressão de incorporeidade da dama na cantiga de amor galego-portuguesa, em contraste com a “carnalidade” concreta, mesmo se tenuemente velada, da dama provençal, quer a ausência de dimensões espaciais e temporais da primeira confrontada com a precisa localização da segunda num contexto histórico-ambiental o mais das vezes bem determinado.
LANCIANI, Giulia, 2000. “Cantiga de amor”. In Dicionário da Literatura Medieval Galega e Portuguesa. 2.ª ed. Lisboa: Caminho (pp. 136-137) (1.ª ed.: 199
A arte de amar dos trovadores
Ao contrário da cantiga de amigo, o cantar de amor não sugere ambientes, sejam físicos, determinados por referências ao mundo exterior, ou sociais, resultantes da presença de personagens interessadas no enredo amoroso; não se refere à mãe, ao santo da romaria, às ondas do mar ou às árvores em flor. [...]
Não há espaço à volta nos cantares de amor [...], mas só a voz que canta na solidão: uma súplica do apaixonado para que a “senhor” reconheça e premeie o seu “serviço”; ou um elogio abstrato da beleza dela; ou uma descrição dos tormentos do poeta dirigida à piedade ou “mesura” da “senhor”. O amor era concebido à maneira cavaleiresca, como um “serviço”. O cavaleiro “servia” a dama pelo tempo que fosse necessário para merecer o seu galardão. Consistia esse serviço em dedicar-lhe os pensamentos, os versos e os atos; em estar presente em certas ocasiões; em não se ausentar sem licença, etc. O servidor está para com a “senhor” como o vassalo para com o suserano [...].
A regra principal deste “serviço” era, além da fidelidade, o segredo. O cavaleiro devia fazer os possíveis para que ninguém sequer suspeitasse do nome da sua senhora, indo até ao sacrifício de se privar do seu convívio, ou de se fingir apaixonado por outra. [...]
Na grande maioria das cantigas de amor, os requerimentos assíduos do “servidor” visam conseguir da “senhor” uma coisa que se designa pela expressão “fazer bem”. É fácil compreender o que significa este eufemismo [...].
Mas o que é próprio das cantigas de amor e do seu modelo provençal é a distância a que o amante se coloca em relação à sua amada, a que chama senhor, tornando-a um objeto quase inacessível; a atitude é a de uma espécie de ascese1 abstinente, seja qual for a realidade a que as palavras servem de cortina. A regra do segredo não é só, porventura, uma precaução exigida por amores clandestinos, numa sociedade em que o adultério era punido por lei constantemente transgredida, mas uma regra ascética que tornava o amor mais intenso quanto mais solitário e à margem da sociedade. O amor trovadoresco e cavaleiresco é, por ideal, secreto, clandestino e impossível. [...]
Nisto, os cantares de amor distinguem-se como o preto e o branco dos cantares de amigo. [...]
Fortalecido pelos obstáculos, o amor apura-se ao calor de um longo sofrimento, que os poe-tas comparam com a agonia da morte. O amor e a morte aparecem constantemente associados nos cancioneiros. Essa morte é a própria vida, porque o sofrimento amoroso dá à vida a intensidade máxima.
SARAIVA, António José, 1998. O Crepúsculo da Idade Média em Portugal. 5.ª ed. Lisboa: Gradiva (pp. 21-23 e 26) (1.ª ed.: 1990)1. devoção religiosa.
Manual · p. 5652010251530OEXP10DP © Porto EditoraOEXP10DP_20142842_F22_2PCImg.indd 3463/10/15 2:51 PM
O código do amor cortês
O trovador [...] serve a sua dona como o vassalo serve o suserano, com diligência e fidelidade. [...]
Mas assim como o sistema feudal implicava vários graus de vassalagem, assim também o amor, que se revela na poesia provençal um longo e paciente aprendizado. Para se alcançar o favor supremo da dona, era necessário percorrer quatro estádios: o do aspirante, que se consome em suspiros (fenhedor), o do suplicante, que ousa já pedir (precador), o do namorado (entendedor) e o do amante (drut). [...]
O amor português é bem mais simples; e, se perde em complicações e subtileza, ganha, sem dúvida, em emoção e sinceridade. Da hierarquia amorosa dos provençais só são conhecidos, entre nós, os dois últimos graus. E o último, o de drut, que deu em português drudo, só o encontramos nas cantigas de escárnio e maldizer. A poesia virginal da cantiga amorosa não podia ir além de entendedor. Esta expressão, sim, que é frequente, e ainda mais a forma verbal entender u ̃ a dona. [...]
O amor não podia falar uma linguagem desordenada, impetuosa; tinha de conter-se em certos limites de razoável moderação. A esta espécie de válvula de segurança do afeto amoroso deu--se o nome de mesura.
A mesura é, deve ser, a virtude suprema do amador, ao qual impõe uma infinita paciência, tão grande, que muitos a comparavam à dos bretões, esperando, séculos e séculos, a vinda do rei Artur. A vontade de não exceder a medida, o receio de que a amada sofra no seu prez, o desejo, enfim, de servir pelo prazer de servir e não pela mira do galardão, encontram-se definidos em mais duma cantiga e correspondem bem à finura da nossa sensibilidade [...].
Além desta atitude submissa e tremente, outra obrigação tinha ainda o perfeito amador: a mais absoluta discrição que lhe vedava sobretudo divulgar o nome da amada. [...] De resto, o segredo, em todos os tempos e países, foi sempre a alma do negócio e também a alma do amor. [...]
Enfim, o rasgo mais característico do amor português é a coita de amor, que faz ensandecer e morrer o pobre namorado. A nossa cantiga impressiona pelo que tem de triste, de fatal, de consumidor. [...] A norma era, ao fim duma vida votada a um amor infeliz, não compartilhado, morrer... nas cantigas.
LAPA, Manuel Rodrigues, 1977. Lições de Literatura Portuguesa: Época Medieval. 9.ª ed. Coimbra: Coimbra Editora (pp. 136-143) (1.ª ed.: 1934)510201525Manual · p. 56OEXP10DP_20142842_F22_2PCImg.indd 3473/10/15 2:51 PM
A arte de amar dos trovadores
Ao contrário da cantiga de amigo, o cantar de amor não sugere ambientes, sejam físicos, determinados por referências ao mundo exterior, ou sociais, resultantes da presença de personagens interessadas no enredo amoroso; não se refere à mãe, ao santo da romaria, às ondas do mar ou às árvores em flor. [...]
Não há espaço à volta nos cantares de amor [...], mas só a voz que canta na solidão: uma súplica do apaixonado para que a “senhor” reconheça e premeie o seu “serviço”; ou um elogio abstrato da beleza dela; ou uma descrição dos tormentos do poeta dirigida à piedade ou “mesura” da “senhor”.
O amor era concebido à maneira cavaleiresca, como um “serviço”. O cavaleiro “servia” a dama pelo tempo que fosse necessário para merecer o seu galardão. Consistia esse serviço em dedicar-lhe os pensamentos, os versos e os atos; em estar presente em certas ocasiões; em não se ausentar sem licença, etc. O servidor está para com a “senhor” como o vassalo para com o suserano [...].A regra principal deste “serviço” era, além da fidelidade, o segredo. O cavaleiro devia fazer os possíveis para que ninguém sequer suspeitasse do nome da sua senhora, indo até ao sacrifício de se privar do seu convívio, ou de se fingir apaixonado por outra. [...]
Na grande maioria das cantigas de amor, os requerimentos assíduos do “servidor” visam conseguir da “senhor” uma coisa que se designa pela expressão “fazer bem”. É fácil compreender o que significa este eufemismo [...]
.Mas o que é próprio das cantigas de amor e do seu modelo provençal é a distância a que o amante se coloca em relação à sua amada, a que chama senhor, tornando-a um objeto quase inacessível; a atitude é a de uma espécie de ascese1 abstinente, seja qual for a realidade a que as palavras servem de cortina. A regra do segredo não é só, porventura, uma precaução exigida por amores clandestinos, numa sociedade em que o adultério era punido por lei constantemente transgredida, mas uma regra ascética que tornava o amor mais intenso quanto mais solitário e à margem da sociedade. O amor trovadoresco e cavaleiresco é, por ideal, secreto, clandestino e impossível. [...]
Nisto, os cantares de amor distinguem-se como o preto e o branco dos cantares de amigo. [...]
Fortalecido pelos obstáculos, o amor apura-se ao calor de um longo sofrimento, que os poe-tas comparam com a agonia da morte. O amor e a morte aparecem constantemente associados nos cancioneiros. Essa morte é a própria vida, porque o sofrimento amoroso dá à vida a intensidade máxima.
SARAIVA, António José, 1998. O Crepúsculo da Idade Média em Portugal. 5.ª ed. Lisboa: Gradiva (pp. 21-23 e 26) (1.ª ed.: 1990)1. devoção religiosa.
Manual · p. 5652010251530OEXP10DP © Porto EditoraOEXP10DP_20142842_F22_2PCImg.indd 3463/10/15 2:51 PM
quinta-feira, 11 de outubro de 2018
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