A Ilha dos Amores e a mitificação do herói n’Os Lusíadas
Mas é na Ilha dos Amores que assistimos à realização daquilo que constitui a essência da epopeia: o poeta torna imortais os feitos do herói nacional, elevando os nautas, que, metonimicamente, representam o povo português, à condição de deuses, pois Vénus “Os Deuses faz descer ao vil terreno / E os humanos subir ao Céu sereno”.
Os marinheiros unem-se às deusas amorosas que os recompensam após o seu percurso iniciático, após a superação de todas as provações, num espaço onde encontram o amor, onde as deusas “As mãos alvas lhe davam como esposas” e onde “Divinos os fizeram, sendo humanos”, pois esta ilha “Outra cousa não é que as deleitosas / Honras que a vida fazem sublimada”. E, seguindo a linha de pensamento de acordo com a qual concretiza o carácter épico da sua obra, o poeta deixa um convite à continuidade da ação dos portugueses, apontando-lhes o merecido prémio.
O mito da Ilha dos Amores surge, assim, como algo que, de facto, não existe, mas que funciona, ao nível do inconsciente coletivo, como a realização dos desejos humanos associados ao ideal de uma recompensa merecida, pois o mérito é real.
Finalmente, no Canto X, a ascensão dos heróis humanos na escala existencial é consumada, quando Thetys mostra a Vasco da Gama a máquina do mundo, constituída por onze esferas; no centro, encontrava-se a Terra, de acordo com a teoria de Ptolomeu, e os quatro elementos.
Vasco da Gama tem, então, acesso a uma visão do mundo para a qual contribuem as próprias descobertas realizadas pelos portugueses:
“Vês aqui a grande máquina do Mundo,
Etérea e elemental, que fabricada
Assi foi do Saber, alto e profundo […]”
Ou seja, a divinização do herói nacional, tão temida por Baco, encontra a sua expressão plena no momento em que o nauta tem acesso ao segredo do Universo, ao conhecimento vedado ao mortal comum.
Os Lusíadas apresentam, assim, um homem que “é a medida de todas as coisas”, como defendia Protágoras, numa aceção humanista que se prende com uma determinada visão do mundo: o antropocentrismo, que substitui o teocentrismo medieval e, consequentemente, valoriza a razão em detrimento do dogma. É a apologia da experiência e do saber, e a crença nas capacidades ilimitadas do Homem que, em perfeita consonância com o espírito renascentista, encontramos na epopeia camoniana. A origem da matéria épica é real e enraíza na História de Portugal, construída pelo povo luso, o herói do Poema.
Não esqueçamos, porém, que são reincidentes, na epopeia, as alusões a um império que começa a desmoronar-se e a um Portugal ocioso e esquecido do seu passado glorioso.
JACINTO, Conceição, e LANÇA, Gabriela, 2007. Análise das obras Os Lusíadas, Luís de Camões, Mensagem, Fernando Pessoa. Porto: Porto Editora
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