quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

Velho do Restelo


O episódio do Velho do Restelo n’Os Lusíadas

Este episódio é, sem dúvida, o mais controverso do Poema. Quem é este Velho, que voz é a sua, de quem é a voz que por ele fala?

É fora de dúvida que ele representa a voz do bom senso. Nas suas palavras se reflete toda uma corrente de opinião contrária à prossecução da viagem para a Índia, considerada como envolvendo demasiados riscos. Politicamente, o Velho está do lado de quantos se opunham à nossa expansão para Oriente e propunham que essa expansão se fizesse em África. Essas correntes de opinião tiveram, de resto, existência histórica e corresponderam aos interesses opostos da velha nobreza e da burguesia ascendente. Consoante o peso político das duas classes, assim se iam conquistando praças no Norte de África ou descobrindo novas terras, procurando alcançar a Índia, produtora de riquezas.

Aparentemente, porque não condena as palavras do Velho, porque insiste por diversas vezes em que se trata de um velho digno de respeito e dotado de autoridade, Camões identificar-se-ia com as suas palavras, condenando, assim, de certo modo, a viagem de Vasco da Gama.

Tal geraria uma contradição dificilmente explicável, num Poema destinado a glorificar aquilo que, no conjunto da História de Portugal, constituía a maior glória: justamente a viagem de Vasco da Gama, escolhida para ação central do Poema. […]

O episódio polarizaria, pois, uma espécie de antítese à tese que o poema parece querer constituir: a de que, no mar, o homem encontra a ocasião das ocasiões para ultrapassar as suas naturais fraquezas e limitação.

Ora, independentemente de saber qual a posição de Camões face ao rumo que deveria ser ou ter sido o da nossa expansão, parece-me que a solução desta contradição aparente está no próprio Poema: os navegadores, em nome da lealdade ao rei e à pátria, não se deixam demover e partem, apesar de tudo. Herói é aquele que é movido por um impulso de grandeza tal que não escuta a voz do bom senso e da razão patriótica. Herói é aquele que, consciente embora do aspeto irracional de um empreendimento, para ele avança, cheio de força interior, bastante para vencer todos os obstáculos que se lhe deparem. Porque, dirá mais tarde Camões, em contraponto às palavras do Velho do Restelo, a imortalidade conquista-se

“Pelo trabalho imenso que se chama

Caminho da virtude, alto e Fragoso,

 Mas, no fim, doce, alegre e deleitoso” (IX, 90)

O progresso do homem faz-se na luta, muitas vezes ilógica, absurda, contra os obstáculos que lhe move o “Céu sereno”.

Segundo Óscar Lopes, a fala do Velho do Restelo: “formula, não a antítese ao tema central da epopeia, mas a tese a que a epopeia se contrapõe”.

Isto é, a viagem do Gama demonstrará que, apesar do Velho, Vasco da Gama chegará à Índia – novo Ícaro ou novo Prometeu, conquistando, com imenso esforço, outro elemento – a água – que não o que lhe é e nos é próprio: a Terra. A sua viagem insensata será, não um recuo, uma queda, mas um passo em frente na conquista de um ideal de Homem superior à sua fraqueza, à contingência de “bicho da terra”.

PAIS, Amélia Pinto, in CAMÕES, Luís de, 1999. Os Lusíadas (Organização, introdução e notas de Amélia Pinto Pais). Porto: Areal (3.ª ed.

 

No episódio do Velho do Restelo, assistimos ao discurso de um velho que se encontra na praia “entre a gente” e que, elevando o tom de voz, manifesta a sua oposição em relação à realização da viagem à Índia por mar.

O episódio do Velho do Restelo surge assim como a expressão de uma voz discordante em relação à política de expansão edificando-se o seu discurso no valor da experiência. O Velho simboliza uma parte dos portugueses que se opunha à empresa da Índia preferindo realizar a guerra santa no Norte de África.

Neste episódio, à tese e argumentação do Velho encontra-se subjacente uma visão da viagem à Índia por mar segundo a qual a sede de poder e de fama daqueles que governam constitui a motivação real da viagem da armada de Vasco da Gama, ainda que essa motivação surja aliada a uma ideologia cujo valor fundamental é a “honra”. Assim, a viagem à Índia, cujas consequências são imprevisíveis, constitui, para o Velho que se encontra na praia, mais uma ação desastrosa em que o povo é arrastado para “perigos” e “mortes”, porque é enganado com promessas de riqueza e de glória, o que motiva a sua indignação. A argumentação do Velho evoca ainda o facto de a partida dos homens, que implicava o abandono do reino aos velhos, às mulheres e às crianças, constituir igualmente uma forma de fragilizar o país face ao inimigo.

Com efeito, estava em causa a resistência a uma nova conceção de vida da nação, o povo, ligado à terra, à agricultura, tornava-se aventureiro na conquista de um outro espaço – o mar –, contribuindo para a renovação do reino.

As palavras do Velho do Restelo não representam apenas o medo perante o desconhecido ou a defesa de uma ataraxia que se opõe a uma perspetiva de interpretação épica daquele momento da História nacional ou o apelo sensato da experiência face à ânsia de aventura, trata-se, efetivamente, de um discurso no qual se condena a política da empresa à Índia, subversão da visão e da versão oficial dos Descobrimentos.

Uma leitura atenta permite-nos, contudo, perceber que este velho criado por Camões não critica apenas aqueles que partem. A sua voz estende-se à ação do Homem enquanto espécie, pelo facto de este não se contentar com os limites impostos pela sua própria condição, revelando-se dominado pela “Dura inquietação d’alma e da vida” (est. 96, v. 1). Essa inquietação é simbolizada por três figuras mitológicas: Prometeu que roubou o fogo aos deuses para o entregar aos Homens, ato que lhe custou um castigo eterno – foi colocado no cimo de um monte, onde uma águia lhe comia o fígado, que se renovava em seguida – Faetonte, filho do Sol, que ao conduzir o carro de seu pai foi vítima da sua inexperiência e deslumbramento o que o levou a aproximar-se demasiado da Terra, que quase incendiou, e que penetrou os domínios dos astros, motivando a queixa destes e a determinação do Sol de matar o filho, como forma de o controlar; e por Ícaro que, depois de colocar asas construídas por seu pai, Dédalo, e de as colar com cera, para fugir do labirinto onde se encontravam presos, se deixou inebriar pela sensação do voo e se aproximou demasiado do Sol, o que provocou a sua queda e morte, pois a cera derreteu. O Velho constata, assim, que o Homem (cujas ações são simbolicamente associadas às figuras mitológicas mencionadas) deseja sempre alcançar aquilo que, apesar de causar sofrimento, lhe proporciona a recompensa da conquista. Na realidade, ainda aqui ecoa o som da voz do poeta ao constatar a fragilidade de “um bicho da terra tão pequeno”, que superará a sua condição ainda que, para tal, tenha que derramar lágrimas de dor ou o espere a punição. É esta atitude que caracteriza a condição humana indissociável do desafio, da prevaricação que conduz ao conhecimento e cujo primeiro testemunho é dado por Adão e Eva, no momento em que desobedecem a Deus, porque provam a maçã proibida; essa é a negação que o velho realiza em relação à essência da condição humana.

JACINTO, Conceição, e LANÇA, Gabriela, 2007. Análise das obras Os Lusíadas, Luís de Camões, Mensagem, Fernando Pessoa. Porto: Porto Editora

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