segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

O Encoberto


O Encoberto

A terceira e última parte da Mensagem situa-se já posteriormente ao desastre de Alcácer Quibir (1578), que é, segundo Pessoa, o primeiro entre os três grandes fatores da decadência de Portugal; os outros dois são a desnacionalização com a implantação de um sistema monárquico estrangeirado (1820) e a mesma desnacionalização, que Pessoa considera degenerescência, com a implantação da República (1910). É, por isso, muito significativo, neste contexto, que esta última parte do poema se chame O Encoberto, porque se trata do encobrimento gradual do próprio Portugal. O poeta começa por referir os Símbolos do Encoberto, o primeiro dos quais é D. Sebastião, do qual diz que, apesar de ter caído no areal, ter morrido nessa desventura, aquilo que importa é que se criou um símbolo, um ideal que era mais do que o homem, o rapaz que ali ficou jazendo. E, assim, “É O que eu me sonhei que eterno dura, / É Esse que regressarei.” É esta a primeira metamorfose do D. Sebastião-homem em D. Sebastião-símbolo. O poeta cruza depois o sebastianismo com o mito do Quinto Império:

Grecia, Roma, Christandade, Europa – os quatro se vão Para onde vai toda idade.

E pergunta depois, desafiando o leitor:

Quem vem viver a verdade Que morreu D. Sebastião?

Passados os quatro impérios, espera-se algo que não vá “para onde vai toda a idade”, isto é, algo que seja fora do tempo, que seja o império que não mais possa ser destruído. […]

Depois de tratar das diversas metamorfoses e relações do encoberto (os seus símbolos), o poeta passa agora a outra parte: Os Avisos. Os avisos são lançados por três profetas: o primeiro é Bandarra, o sapateiro de Trancoso; o segundo, António Vieira; e, finalmente, o terceiro é um poema a que o poeta apôs discretamente apenas o título Terceiro. Esse terceiro não identificado é o próprio Pessoa, uma espécie de síntese dos outros dois profetas do Quinto Império.

É curioso que neste poema não haja uma profecia, mas antes a expressão de uma angústia e de um desejo. É um poema feito quase só de interrogações, em que o poeta se dirige diretamente ao Messias: “quando quererás voltar?”, “Quando é o Rei? Quando é a Hora?”. É como se, perante a situação dramática de Portugal, o próprio poeta procurasse interpelar o Messias, recriando a ambiência que suscitasse o seu regresso. Passados os avisos proféticos, o poeta descreve Os Tempos, isto é, os cinco tempos, ciclos ou momentos desde o encobrimento de D. Sebastião ou de Portugal. Assim, começam os tempos com Noite, a noite que é a escuridão resultante desse mesmo encobrimento. Segue-se a Tormenta e, depois, a Calma. E começa o novo ciclo em Antemanhã, que não é uma aurora esplendorosa, mas com Nevoeiro, o último tempo. Pessoa tinha a consciência nítida do estado em que se encontrava Portugal, quando comparada essa triste realidade que era com aquela que ele antevia e sonhava. Este poema com que fecha a Mensagem deixa bem patente, e em simultâneo, a sua consciência aguda do presente e a esperança num despertar da alma portuguesa. Este despertar só podia acontecer com o nevoeiro porque é no meio dele que a lenda diz que virá o Rei. O poeta descreve aí a ambiência que se vive hoje em Portugal (“Portugal a entristecer – / Brilho sem luz e sem arder”), em que “Ninguém sabe que coisa quer. / Ninguém conhece que alma tem, / Nem o que é mal nem o que é bem.”; é este clima em que “Tudo é incerto e derradeiro. / Tudo é disperso, nada é inteiro.” que o leva a dizer: “Ó Portugal, hoje és nevoeiro…” Chegado o nevoeiro, confirmada a lenda, “É a Hora!”, assim termina o poema, respondendo à pergunta lançada atrás, no poema titulado Terceiro.

SINDE, Pedro, “Prólogo” in PESSOA, Fernando, 2010. Mensagem. Porto: Porto Edito

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

O Infante


O Infante

O poema abre com uma frase lapidar (processo ao gosto de Pessoa e muito utilizado em Mensagem): “Deus quer, o homem sonha, a obra nasce” (v. 1). É nela que se encerram as linhas dominantes de todo o texto. Essa frase é constituída por três segmentos: Deus quer / o homem sonha / a obra nasce – cada um dos quais se encontra organizado em torno de formas verbais no presente do indicativo (quer, sonha, nasce), exprimindo realidade, atualidade, valor de lei. Esboça-se um princípio basilar (notar, no v. 1, o ritmo e a presença do assíndeto, e em geral, no poema, a organização estrutural em quadras isomórficas e isométricas, de esquema rimático a b a b – para exprimir certeza, inflexibilidade, determinação superior) segundo o qual é a vontade de Deus que leva os humanos a pôr de pé uma obra. Notar ainda a presença da gradação, no verso 1, para exprimir a lógica da relação Deus / homem / obra. As formas verbais escolhidas assentam em verbos expressivos, cujo sentido, para ser precisado com suficiente rigor, necessita de ser esclarecido. É com a finalidade de ilustrar a frase lapidar do v. 1, que surgem os restantes 11 versos do poema, que iremos considerar em função do alcance de cada um dos três segmentos referidos.

1 – Deus quer

Há uma força superior detentora do querer. É dela que depende a responsabilidade das decisões a tomar. Deus deve (é essa a lógica instituída) querer para que o homem sonhe e a obra nasça. E Deus quis (v. 2). Então o homem sonhou (v. 4) e a obra nasceu (vv. 5-8) – notar como as formas verbais contidas nos versos 2 a 11 se encontram predominantemente no pretérito perfeito do indicativo (quis, sagrou, foste desvendando, foi, clareou, viu surgir, sagrou, criou, deu, cumpriu, desfez), exprimindo que o princípio em causa foi respeitado e se verificou. De facto, nada falhou por parte do querer divino. Ele era necessário e aconteceu. Estava determinado que Deus teria de querer para que as realizações humanas se efetivassem – e “Deus quis”. Deus quis a unificação da terra, que o mar fosse dominado de forma a servir de elemento de união entre os continentes e os povos, e estes pudessem estabelecer comunicação. Para isso, Deus sagrou o Infante (“Sagrou-te”, v. 4, “te sagrou”, v. 9 – repare-se na insistência, para exprimir que a decisão do Infante de se aventurar no mar tem origem divina e não em qualquer capricho humano) e, através dele, sagrou o povo português (“criou-te português”, v. 9, “em ti nos deu sinal”, v. 10), predestinou-o para os grandes feitos das descobertas. Então, Deus (cujo querer é impreterível) quis que fosse o Infante/Portugal a dominar os mares e a estabelecer comunicação entre os povos e os continentes. Mas esse querer “que a terra fosse toda uma” pode ser entendido num sentido físico e material, mas ainda (e é a lógica do texto que admite essa dupla interpretação – já que Portugal, tendo materialmente feito tudo, ainda se não cumpriu…) num sentido espiritual. Comunicar é mais que ocupar uma posição de contiguidade, implica também uma dimensão cultural e espiritual profunda.

2 – o homem sonha

O Infante (representando o povo português – a ligação é confirmada pelo v. 10) partiu para o cumprimento da missão que lhe estava confiada. Teve de ultrapassar dificuldades, já que o poeta diz que ele “foi desvendando a espuma” (notar a expressividade do verbo conjugado perifrasticamente, com o sentido de descobrir, mostrar, revelar…)Os esforços do Infante foram coroados de êxito – “cumpriu-se o mar” (v. 11); fisicamente, o mundo tornou-se um. O império português ergueu-se e “se desfez” (v. 11). A dimensão material dos desígnios divinos foi realizada. Mas… falta ainda cumprir-se a outra dimensão, a espiritual, que já ultrapassa o Infante e é devida aos portugueses. O Infante, apesar do halo de sagrado com que Deus o coroou, era mortal; cumpriu a parte da determinação divina que, na representação dos portugueses e de Portugal, lhe competia, e passou. Dele permanece o exemplo e o estímulo que é devido aos mitos. A dimensão espiritual do império (confiada por Deus ao povo português, tal como a sua dimensão material, o império real), essa, encontra-se por cumprir.

3 – a obra nasce

A obra referida no poema toma, no seu desenvolvimento, dois sentidos precisos: por um lado, exprime uma consequência direta (concreta), por outro lado uma possibilidade (uma generalização). Isto é: por um lado, Deus quis, o homem (o Infante/Portugal) sonhou, a obra (o império português) nasceu; por outro lado, pretende-se dizer que sempre que se conjugam tais aspetos, sempre que Deus quer e o homem sonha, então a obra – o outro império, de dimensão cultural e espiritual – nascerá. A obra nascida é apresentada no texto com característica de sonho – em consonância com o verbo usado no v. 1 – “o homem sonha”. O império construído, a unificação dos continentes, tomou alicerces no mar (na orla branca); no mar, atingiu-se uma ilha, dessa ilha um continente; da escuridão se fez luz (clareou); da ignorância se passou ao conhecimento, a civilização ocidental encontrou-se com a oriental. E assim se atingiu, correndo, “o fim do mundo”, assim se eliminaram as barreiras e os limites. E deste modo, do mar (do azul profundo), de repente, irrompeu a unificação dos continentes. Repare-se, além do referido cariz onírico da expressão, no tom gradativo e simbólico, no ritmo cadenciado, na musicalidade assente em sons variados (exprimindo jovialidade e até uma certa impaciência). Nasceu a obra, a terra unificou, o mar passou a unir em vez de separar, o império se cumpriu e se desfez…

Dependia de Deus querer, e foi desejado por Ele que o homem (o Infante, os portugueses, Portugal) sonhasse. Esse sonho aconteceu, e desse sonho surgiu a unificação dos mares e a criação do império (um sonho ao mesmo tempo nacionalista e universal). Mas esse império fez-se e se desfez, ergueu-se e desmoronou-se; império material, constituído por valores terrenos. Ora… há algo mais ambicioso que importa considerar. Portugal foi incumbido de fazer com que “a terra fosse toda uma” (v. 2), e essa unificação tem também uma dimensão espiritual que ainda se não cumpriu. É preciso que se cumpra Portugal. Portugal deverá liderar um novo império, mas não já de índole material, como o que se ergueu e se desfez. O que falhou em todo o processo? Deus quis, o homem sonhou, a obra nasceu. Uma obra efémera, perecível, como tudo o que é material e humano. Em Deus não está a culpa, já que sagrou o Infante e o destinou (a ele e a quantos ele representava) a feitos muito acima da sua condição material. Ele e o povo por si representado foram incumbidos da missão de dominar e unificar o mar. A nível do temporal, o homem cumpriu o que lhe competia, no sentido das forças de que havia sido investido. A obra levantada foi a do cumprimento do mar… e do império. Mas isso já é história, porque o império se desfez. Como ser humano é possuir limitações, não houve continuidade para esse império. Por isso o poeta implora com tanto fervor: “Senhor, falta cumprir-se Portugal!” (v. 12 – notar o regresso ao presente do indicativo, para exprimir urgência). Que o ânimo deste povo recupere para que os esforços do Infante tenham continuidade e para que Portugal se assuma na direção para que foi predestinado…

Trata-se já de um outro império, não de um império material como o que se formou e se desfez. É uma outra predestinação para Portugal. A que se quererá referir o poeta, no derradeiro verso do poema? A uma qualquer utopia? A um império linguístico-cultural liderado pela língua portuguesa ou pelo espírito criativo e de missão de que os portugueses têm dado provas, desde o princípio da sua história?

Seja o que for que espera Portugal, tratar-se-á de uma predestinação divina (“Deus quer” – v. 1), cujo desempenho foi confiado ao Infante/povo português, mas apenas foi cumprido na sua dimensão temporal/material (notar as maiúsculas em Mar e Império). É preciso que Portugal se cumpra integralmente, que complete com a dimensão espiritual a materialidade do império que formou. Também para isso – que ainda falta – ele foi predestinado por Deus.

SILVA, Lino Moreira da, 1989. Do Texto à Leitura   (Metodologia da Abordagem Textual) Com a Aplicação à Obra de Fernando Pessoa. Porto: Porto Editor

Inês de Castro

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