As reflexões do poeta
n’Os Lusíadas – o declínio do Império
Para além dos planos narrativos que constituem
a epopeia, encontramos um outro plano que diz respeito às reflexões do poeta a
propósito de diferentes assuntos que têm lugar ao longo da narração. Estas
reflexões constituem a visão do poeta renascentista em relação à própria
condição humana, o que serve, por vezes, a construção do herói do poema, que
supera todas as provações e será premiado pelo seu esforço e valentia, na Ilha
dos Amores, espaço simbólico de recompensa pela conclusão de um percurso
glorioso. O poeta revela também a sua perspetiva em relação a uma fase do
Império Português e aos valores dominantes no país, num momento em que o brilho
das grandes navegações começava a ser ofuscado pelo materialismo que grassava
no reino, pela indiferença pela arte e pela cultura; o poeta manifesta ainda o
seu desalento pelo desprezo a que a sua epopeia era votada. Vejamos, então, os
aspetos que dominam a atenção do autor da epopeia nacional e merecem a sua
intervenção, numa expressão da sua mundividência ao longo dos dez cantos que
integram o poema épico camoniano.
No final do Canto I (est. 105-106), o
poeta apresenta as suas reflexões sobre a insegurança da vida, na sequência de
uma síntese da situação narrativa (quatro primeiros versos da est. 105)
centrada na traição de que os portugueses foram vítimas (Baco preparara-lhes
várias ciladas, entre elas, um piloto que conduziria os portugueses ao porto de
Quíloa, onde eram esperados por inimigos; Vénus afastou a armada do perigo e os
portugueses retomaram o seu caminho até Mombaça). As reflexões do poeta sobre a
fragilidade da vida, sobre a tragicidade que se encontra subjacente à própria
condição humana evidenciam o carácter humanista da epopeia e servem a
arquitetura semântica da obra.
No Canto V (est. 92-100), o poeta
censura os portugueses que desprezam a poesia, tecendo uma crítica acerba à
falta de estima que os líderes políticos portugueses revelam em relação à
criação literária, ao contrário da atitude que mantinham os grandes chefes
militares e políticos da Antiguidade, que protegiam os poetas ou eram eles
próprios cultores das letras (estes sabiam que só através da escrita se
tornariam imortais); o poeta afirma ainda que é por falta de cultura que a
elite portuguesa despreza a criação artística: “quem não sabe arte, não na
estima”. De facto, é o povo português que merece inúmeras críticas do poeta. O
sentido crítico do escritor e a sua capacidade de análise não lhe permitem
omitir a perceção da situação nacional, que começava a dar sinais de
decadência: os portugueses do século XVI pareciam ter esquecido o valor da arte
e da cultura enquanto manifestações da espiritualidade humana. O poeta critica,
assim, a indiferença dos políticos que governavam o país face à poesia.
Define-se aqui o carácter pedagógico da epopeia renascentista, através do apelo
que o poeta realiza, ao convidar os portugueses a seguir aqueles que devem
funcionar como modelos, pela forma como souberam conciliar o ofício guerreiro e
as letras.
No Canto VI (est. 95-99), as
considerações do poeta incidem sobre o valor da Fama e da Glória num mundo que
se deixa vencer pelos valores de ordem material e no qual se descura o mérito e
se renuncia à capacidade de realizar ações com o objetivo de engrandecer o
reino. Assim, mais uma vez, em tom didático, o poeta afirma que os portugueses
não deverão deixar-se dominar pela ociosidade e pela inação, defendendo o
esforço, o sofrimento e o desprezo pelo dinheiro como forma de alcançar
recompensas futuras.
No Canto VII, o poeta invoca as
ninfas do Tejo e do Mondego, fazendo uma interseção entre esta evocação e
alusões a aspetos de carácter autobiográfico, e lamentando a sua sorte, pois “A
fortuna [o] traz peregrinando, / Novos trabalhos vendo e novos danos” (est. 79,
vv. 3-4); Depois, numa linha de contestação do materialismo individualista e da
corrupção que impera no país, a crítica do poeta dirige-se aos opressores e aos
exploradores do povo. O poeta recusa-se a cantar quem privilegiar o seu
interesse pessoal em detrimento do bem comum e de seu rei: os ambiciosos que
querem subir para, nos “grandes cargos”, “Usar mais largamente de seus vícios”
(est. 84, v. 8); os que “Se muda[m] em mais figuras que Proteio” , ou seja, os
que apresentam um comportamento camaleónico, alterando a sua conduta no sentido
de agradar; os que, para manterem uma imagem favorável perante o rei, não
hesitam em roubar o povo; os que são muito diligentes e severos no cumprimento
da lei do rei, mas não se sentem obrigados, em nome da justiça, a pagar “o suor
da servil gente”; finalmente, os que se empenham em “taxar, com mão rapace e
escassa, / Os trabalhos” dos outros. Estas intervenções do poeta, para além de
revelarem a sua ousadia e coragem, retratam, com efeito, um Portugal minado
pelos interesses pessoais, onde o sentimento patriótico aliado ao bem coletivo
e à moral tradicional parecia inexistente. É esta constatação que leva o poeta
a afirmar que cantará apenas aqueles que arriscarem a sua “amada vida” por Deus
e por seu Rei.
No Canto VIII (est. 96-99), o poeta
reflete sobre o poder do ouro e procede à enumeração de atos de corrupção que
percorrem todos os estratos socais, em particular as elites: assim, o dinheiro
“rende munidas fortalezas”, motiva a traição e a falsidade aos amigos, corrompe
“a mais nobres” e “virginais purezas”, origina a depravação das ciências,
cegando a razão e “as consciências”; o poder do ouro leva ainda a uma
interpretação dos textos à qual está subjacente o desrespeito pelo sentido das
ideias que estes apresentam, altera leis, causa perjúrios, torna os reis
tiranos e corrompe os sacerdotes, que só a Deus deveriam servir.
O Canto IX (est. 92-95) apresenta uma
exortação a quantos desejarem alcançar a fama. Neste canto, o poeta dá
conselhos àqueles que aspiram a alcançar a condição de herói: devem, assim,
abandonar o estado de ócio e de indolência, refrear a cobiça, a ambição e o
“torpe e escuro / Vício da tirania”, fazer leis equitativas na paz, que não
deem “aos grandes” o que é dos “pequenos”, fazer guerra contra os “imigos
Sarracenos”; só esta conduta fará “os Reinos grandes e possantes” (est. 94, v.
5), conduzirá ao usufruto de “riquezas merecidas, / Com as honras que ilustram
tanto as vidas” (est. 94, vv. 78) e contribuirá para fazer o rei ilustre, seja através
de conselhos ponderados, seja através da guerra; só esta atitude permitirá,
enfim, que os portugueses se tornem imortais, como se verificou em relação aos
seus antepassados. A inação e a corrupção surgem como as principais causas de
estagnação do país e constituem a grande inibição para que o Homem alcance um
estatuto de herói, o que só acontece se este deixar aflorar o que em si o
distingue dos outros animais e que se manifesta através da vontade (“quem quis,
sempre pôde” – est. 95, v. 6), numa revelação da sua dimensão espiritual. À
condição de herói associa-se a recompensa: “Sereis entre os Heróis esclarecidos
/ E nesta Ilha de Vénus recebidos” (est. 95, vv. 7-8).
No Canto X, os portugueses
despedem-se das ninfas e embarcam para regressar a Portugal. A despedida de
Thetys, que mostrara a Vasco da Gama a Máquina do Mundo (um globo transparente
de acordo com a conceção geocêntrica de Ptolomeu, ainda vigente na época), e
que refere que os nautas lusos ”Levam a companhia […] / Das Ninfas” (est. 143, vv.
6-7), remete simbolicamente, pela alusão ao Sol, para a dimensão criadora que
caracteriza o ser humano, sempre que nele ecoa a pulsão que o impede de
permanecer inativo: “Levam a companhia desejada / Das Ninfas, que hão de ter
eternamente, / Por mais tempo que o Sol o Mundo aquente.” (est. 143, vv. 6-8).
Ainda no Canto X, o poeta traduz o seu desencanto face à situação de decadência
que caracteriza a sua pátria, constatando a oposição entre o estado do reino e
aquilo que é o assunto da sua epopeia: o canto dos feitos gloriosos dos Portugueses.
O poeta despede-se de Calíope, a musa inspiradora que evocara nas estrofes 8 e
9, para que esta o ajudasse a concluir o seu poema, e afirma que está fatigado
(“No mais, Musa, no mais, que a Lira tenho / Destemperada e a voz enrouquecida”
– est. 145, vv. 1-2) não de cantar os portugueses, mas pelo facto de estes não
o escutarem (“E não do canto, mas de ver que venho / Cantar a gente surda e
endurecida” – est. 145, vv. 3-4), porque “a pátria […] está metida / No gosto
da cobiça e na rudeza / Dhu˜ a austera, apagada e vil tristeza” (est. 145, vv.
6-8). Na estrofe 146, porém, o poeta muda de tom e, depois de constatar o
pessimismo e a falta de autoestima que ensombram a nação, dirige-se ao rei
[“Por isso vós, ó Rei, […] / Olhai que sois (e vede as outras gentes) / Senhor
só de vassalos excelentes”] e exorta D. Sebastião, a quem dedicara o seu poema,
a ouvir apenas os conselhos dos “experimentados”, a proteger e a estimar
aqueles que tornam o seu “Império preeminente” (est. 151, v. 4).
Na realidade, não podendo adivinhar o
destino trágico de D. Sebastião (ainda que, no final do poema, possamos
perceber a expressão da inquietação do poeta motivada pela pouca idade e
inexperiência do rei), que viria a desaparecer na batalha de Alcácer Quibir, no
dia 4 de agosto de 1578, dia em que a nata da aristocracia portuguesa morreu
igualmente no campo de batalha, o que daria origem à perda da independência de
Portugal e ao nascimento do mito sebastianista, Camões parece ver (ou deseja
ver) no rei o elemento possível de regeneração do país. O poeta termina a sua
obra, depois de incitar o rei à cruzada, oferecendo-se para o servir na guerra
e para cantar os feitos do seu povo, “De sorte que Alexandro [no rei] se veja /
Sem à dita de Aquiles ter enveja”.
JACINTO, Conceição, e LANÇA,
Gabriela, 2007. Análise das obras Os Lusíadas, Luís de Camões, Mensagem,
Fernando Pessoa. Porto: Porto Editora