Ela canta, pobre ceifeira
No presente texto, encontra-se
equacionada uma questão prioritária em Fernando Pessoa – a relação entre o
pensamento e a felicidade. A tese proposta é a de que a felicidade existe na
ordem inversa do pensamento e da consciência. Para justificar a sua tese, o
poeta estabelece confronto entre a pessoa de uma ceifeira e ele próprio. Quanto
a ela, o poeta mostra tê-la vislumbrado apenas num instantâneo fugaz. Não se
refere a ela com qualquer pormenor que a individualize ou pessoalize. A
ceifeira é apenas uma ceifeira, como qualquer ceifeira – daí ser Ela… ceifeira
(v. 1). Tratar-se-á de alguém encontrado por acaso numa seara a ceifar. O poeta
não dá mostras de a ter divisado mais que de relance. É o facto de ceifar e de
ter voz que o faz interessar-se por ela. Não relata dela qualquer pormenor, por
exemplo do rosto, nem sequer refere tê-la tido diante de si, mas deu pela sua
presença à distância. Trata-se, pois, de um instantâneo constituído por: • uma
ceifeira (vv. 1, 3) – “Ela… ceifeira… ceifa…”; • num dia luminoso (v. 6) – “No
ar limpo como um lumiar”; • a cantar
(vv. 1, 3, 8, 11) – “Ela canta… canta…” (presente do indicativo), … “a cantar”
(infinitivo), “E canta…” (presente do indicativo), “canta, canta…”
(imperativo); • enquanto trabalha (vv. 3, 10) – “e ceifa”, “o campo e a lida”.
É essa a base objetiva do texto, assente no mundo real. Dela o poeta parte para
todo um conjunto de reflexões profundas, intimistas, que revela nos restantes
versos. Tal facto vai conferir ao poema o tom vincadamente lírico e reflexivo
que ele possui, já que o instantâneo de que o poeta parte não é mais do que um
pretexto para a manifestação da sua mundividência interior.
É pois a subjetividade do poeta
que compõe a subjetividade da ceifeira. A ceifeira real funciona como motivação
para que o poeta fabrique uma outra ceifeira. Afinal, trata-se de uma aplicação
de quanto o poeta havia querido dizer em “O poeta é um fingidor”. E assim, de
uma ceifeira anónima que canta enquanto trabalha (ceifa), num dia luminoso, o
poeta produz uma pobre ceifeira (v. 1 – repare-se na adjetivação expressiva:
coitada, infeliz…) que talvez se julgue feliz (notar a expressividade do
gerúndio julgando-se, logo a abrir o verso, e o discurso modalizante
evidenciado pelo talvez, dado que o poeta apenas supõe, não possui certezas),
cuja voz é “cheia / De alegre e anónima viuvez” (vv. 3-4), e “Ondula como um
canto de ave” (havendo “curvas no enredo suave / Do som que ela tem a cantar”
(vv. 5, 7-8). Ora o canto, que à partida deveria significar claramente alegria,
felicidade, bem-estar, mostra na ceifeira apenas superficialidade, irreflexão.
Ela insinua-se como uma pessoa feliz, mas o poeta (que trabalha com um padrão
diferente de felicidade) garante que não o é. Di-la pobre (v. 1), “Julgando-se
feliz, talvez” (v. 2). Mas não é feliz já que a sua voz se encontra cheia de
dor, de amargura disfarçada (vv. 3-4). Repare-se, nestes últimos versos, na
expressividade da metáfora (como de viúva) e do paradoxo (alegre… viuvez). O
nome abstrato viuvez, já de si de sentido denso, é ainda qualificado de alegre
e anónima, e liga-se à 3.ª quadra para exprimir luto profundo mascarado de
felicidade (anónima – sem nome, indefinível, inqualificável). É de notar que o
poeta pretende dar à ceifeira uma aparência de serenidade, através dos sons, da
musicalidade, do ritmo, das aliterações, da comparação (como um canto de ave),
do verbo expressivo (ondula). Mas “o enredo suave / Do som que ela tem a
cantar” (vv. 7-8) tem curvas (enigmas…)
É, portanto, pelo sentido que
atribui à voz da ceifeira que o poema penetra nos meandros da sua alma e a
procura definir. O canto dela tem dois valores opostos, o de positividade
(alegria) e o de negatividade (tristeza): é que, por um lado, a ceifeira
aparenta felicidade, canta como se fosse a mulher mais feliz do mundo
(comparação expressiva, personificação de vida, redução ao absurdo: a vida é a
felicidade máxima, e a ceifeira parece querer ultrapassá-la… em felicidade);
mas por outro lado, a sua voz desmascara-a (ondula, possui curvas). E tudo
porque na voz da ceifeira “há o campo e a lida” (v. 10 – notar como o campo e a
lida – o sofrimento, a exploração, a mulher transformada em instrumento de
produção – são manifestados através da voz). É por isso que a ceifeira canta,
mas sem razão (v. 13). Repare-se no duplo imperativo e na exclamação retórica,
multiplicada até ao fim do texto, para exprimir a emotividade transtornada do
poeta e a necessidade de que para ele se reveste a procura da felicidade – que
na ceifeira significa inconsciência). A ceifeira parece ser feliz, mas a sua
voz denuncia-a: há nela “o campo e a lida”, o rebaixamento do humano, o
trabalho excessivo e certamente mal remunerado (temática a oscilar entre o
neorrealismo e o existencialismo). Só que ela, porque não reflete, não tem
consciência disso. E é assim que parece ser feliz, embora qualquer coisa nela
(o canto) destoe da imagem de felicidade que dela se parece libertar. Reparemos
como se revela no texto o ato de cantar da ceifeira: “Ela canta” (v. 1),
“Canta, e ceifa” (v. 3), “ela tem a cantar”
o som (v. 8). Há uma gradação no modo de expressão do poeta. Ela não canta, ela
“tem a cantar”. Não é verdadeiramente senhora do seu ato, age
inconscientemente, está como que condenada a ser o que é. Quanto a si mesmo, o
poeta confessa em si a submissão do sentimento à razão (como explicou em
Autopsicografia), ao mesmo tempo que a mágoa de pensar (“O que em mim sente
‘stá pensando” – v. 14). Só que, se ela é feliz porque inconsciente, ele é
infeliz porque consciente (pensa). Daí ele desejar (mais que apelo, como a
frase imperativa parece querer mostrar, trata-se de um optativo) que ela
derrame (verbo expressivo) dentro dele a sua voz (incerta, ondeando – vv.
15-16, que se ligam aos vv. 3-5) tal como é. É que a voz da ceifeira aparenta
felicidade, embora não seja verdadeira felicidade, mas o pareça só. O poeta
deseja poder transformar-se nela (“poder ser tu, sendo eu!” – v. 17: a procura
desesperada da felicidade, do paraíso perdido da inocência, da simplicidade, da
alegria), mas sem deixar de ser ele mesmo – ter a inconsciência que a
caracteriza, embora mantendo a sua própria consciência. Ser inconsciente, mas
sem deixar de ser consciente, é impossível. O poeta deseja ser feliz, só que
felicidade não se coaduna com reflexão, pensamento, consciência, racionalidade.
Daí essa impossibilidade ser geradora de uma boa parte da angústia que lhe
oprime a alma, e que as apóstrofes que se seguem procuram exprimir (vv. 19-20):
“Ó céu! / Ó campo! Ó canção!”. Elas constituem-se mais que tudo em grito, em
ânsia de libertação, em paroxismo (notar as frases curtas, o ritmo quebrado, a emotividade). O céu, o
campo, a canção serão os três elementos que envolvem o instantâneo que serve de
motivo ao poeta (uma ceifeira num dia luminoso a cantar enquanto trabalha). Por
mais que a consciência (o conhecimento, o pensamento, a ciência – que geram
responsabilidades) o faça infeliz, o poeta mostra-se empenhado nela e mantém o
empenhamento em a procurar – mau grado a brevidade da vida: “A ciência / Pesa
tanto e a vida é tão breve!” (vv. 20-21). Mesmo assim, ele gostaria de se
libertar (tal como acima, v. 15, mais que o sentido imperativo, a gradação
entrai, tornai, passai é constituída por optativos). É uma insistência mais,
por parte do poeta, na inconsciência, se ela fosse possível. Só que o tom em
que ele o manifesta (notar os vv. 22-23,
ligados pelo transporte, em que até a sintaxe o exprime) é angustiado e
desiludido; é o tom de alguém que já se convenceu dessa impossibilidade.
O poeta desejaria que o céu, o
campo, a canção lhe invadissem a alma, a transformassem em sombra (na sua
sombra leve) – em sombra, porque assim não ocuparia espaço, sendo a sombra
apenas resultado de um jogo de luz – e o levassem consigo, concluindo viagem
(passai), acabando-lhe com o sofrimento. E a última quadra do texto é assim a
manifestação do desejo (paradoxal em si mesmo, já que o poeta quer e não quer)
do poeta face à dor de pensar que o atormenta. Em suma, a ceifeira é símbolo da
inconsciência e da felicidade (da felicidade porque da inconsciência), enquanto
o poeta submete o sentimento à razão, e por isso vive angustiado. É consciente,
e por isso infeliz. Como anseia pela felicidade, desejaria ser inconsciente
como a ceifeira, transformar-se nela, ser levado pela ambiência que a rodeia: o
céu, o campo, a canção. Apesar das dificuldades que, em regra, os poemas de
Fernando Pessoa levantam quanto a uma
divisão em partes (sempre importante quando se trata de uma abordagem textual
feita a nível pedagógico-didático), o presente texto poderá dividir-se em duas
partes – compreendendo a primeira as três primeiras estrofes e a segunda as
três últimas. A primeira parte caracteriza-se pelo tom discursivo, com elementos
do espaço exterior (o instantâneo acima referido), entremeados por
manifestações da subjetividade do poeta, mas de um modo comedido, muito
controlado. Predomina o presente do indicativo, nos tempos verbais, as frases
do tipo declarativo, o tom objetivo (embora ele seja aparente já que os
adjetivos e o discurso modalizante concorrem para o contradizer). A terceira
estrofe prepara já o leitor para a 2.a parte. A 2.a parte caracteriza-se pelo
tom emotivo, descontrolado, em que a subjetividade do poeta vem ao de cima e se
impõe. Predominam as frases do tipo exclamativo e imperativo, com apóstrofes
dispostas em anáfora (Ah… Ah… Ó… Ó… Ó…), o ritmo nervoso e rápido,
descontrolado, as frases curtas (algumas
reduzidas ao mínimo, pelo recurso à elipse), as exclamativas retóricas, as
construções paralelas e as repetições (canta, canta… – v. 13). Por todo o texto
se encontram marcas habituais do Pessoa-Ortónimo, como as linhas temáticas
referidas, a organização do poema ao gosto popular, aparentando simplicidade,
em quadras, de versos octossilábicos isométricos, com rima cruzada (a b a b),
ritmo e musicalidade adequados a cada instante do poema, construções lapidares
e muito depuradas pela racionalidade, trocadilhos engenhosos e profundamente
significativos.
SILVA, Lino Moreira da, 1989. Do Texto à Leitura (Metodologia
da Abordagem Textual) Com a Aplicação à Obra de Fernando Pessoa. Porto: Porto
Editora
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