segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Texto informativo


Ela canta, pobre ceifeira

No presente texto, encontra-se equacionada uma questão prioritária em Fernando Pessoa – a relação entre o pensamento e a felicidade. A tese proposta é a de que a felicidade existe na ordem inversa do pensamento e da consciência. Para justificar a sua tese, o poeta estabelece confronto entre a pessoa de uma ceifeira e ele próprio. Quanto a ela, o poeta mostra tê-la vislumbrado apenas num instantâneo fugaz. Não se refere a ela com qualquer pormenor que a individualize ou pessoalize. A ceifeira é apenas uma ceifeira, como qualquer ceifeira – daí ser Ela… ceifeira (v. 1). Tratar-se-á de alguém encontrado por acaso numa seara a ceifar. O poeta não dá mostras de a ter divisado mais que de relance. É o facto de ceifar e de ter voz que o faz interessar-se por ela. Não relata dela qualquer pormenor, por exemplo do rosto, nem sequer refere tê-la tido diante de si, mas deu pela sua presença à distância. Trata-se, pois, de um instantâneo constituído por: • uma ceifeira (vv. 1, 3) – “Ela… ceifeira… ceifa…”; • num dia luminoso (v. 6) – “No ar limpo como um lumiar”; •  a cantar (vv. 1, 3, 8, 11) – “Ela canta… canta…” (presente do indicativo), … “a cantar” (infinitivo), “E canta…” (presente do indicativo), “canta, canta…” (imperativo); • enquanto trabalha (vv. 3, 10) – “e ceifa”, “o campo e a lida”. É essa a base objetiva do texto, assente no mundo real. Dela o poeta parte para todo um conjunto de reflexões profundas, intimistas, que revela nos restantes versos. Tal facto vai conferir ao poema o tom vincadamente lírico e reflexivo que ele possui, já que o instantâneo de que o poeta parte não é mais do que um pretexto para a manifestação da sua mundividência interior.

É pois a subjetividade do poeta que compõe a subjetividade da ceifeira. A ceifeira real funciona como motivação para que o poeta fabrique uma outra ceifeira. Afinal, trata-se de uma aplicação de quanto o poeta havia querido dizer em “O poeta é um fingidor”. E assim, de uma ceifeira anónima que canta enquanto trabalha (ceifa), num dia luminoso, o poeta produz uma pobre ceifeira (v. 1 – repare-se na adjetivação expressiva: coitada, infeliz…) que talvez se julgue feliz (notar a expressividade do gerúndio julgando-se, logo a abrir o verso, e o discurso modalizante evidenciado pelo talvez, dado que o poeta apenas supõe, não possui certezas), cuja voz é “cheia / De alegre e anónima viuvez” (vv. 3-4), e “Ondula como um canto de ave” (havendo “curvas no enredo suave / Do som que ela tem a cantar” (vv. 5, 7-8). Ora o canto, que à partida deveria significar claramente alegria, felicidade, bem-estar, mostra na ceifeira apenas superficialidade, irreflexão. Ela insinua-se como uma pessoa feliz, mas o poeta (que trabalha com um padrão diferente de felicidade) garante que não o é. Di-la pobre (v. 1), “Julgando-se feliz, talvez” (v. 2). Mas não é feliz já que a sua voz se encontra cheia de dor, de amargura disfarçada (vv. 3-4). Repare-se, nestes últimos versos, na expressividade da metáfora (como de viúva) e do paradoxo (alegre… viuvez). O nome abstrato viuvez, já de si de sentido denso, é ainda qualificado de alegre e anónima, e liga-se à 3.ª quadra para exprimir luto profundo mascarado de felicidade (anónima – sem nome, indefinível, inqualificável). É de notar que o poeta pretende dar à ceifeira uma aparência de serenidade, através dos sons, da musicalidade, do ritmo, das aliterações, da comparação (como um canto de ave), do verbo expressivo (ondula). Mas “o enredo suave / Do som que ela tem a cantar” (vv. 7-8) tem curvas (enigmas…)

É, portanto, pelo sentido que atribui à voz da ceifeira que o poema penetra nos meandros da sua alma e a procura definir. O canto dela tem dois valores opostos, o de positividade (alegria) e o de negatividade (tristeza): é que, por um lado, a ceifeira aparenta felicidade, canta como se fosse a mulher mais feliz do mundo (comparação expressiva, personificação de vida, redução ao absurdo: a vida é a felicidade máxima, e a ceifeira parece querer ultrapassá-la… em felicidade); mas por outro lado, a sua voz desmascara-a (ondula, possui curvas). E tudo porque na voz da ceifeira “há o campo e a lida” (v. 10 – notar como o campo e a lida – o sofrimento, a exploração, a mulher transformada em instrumento de produção – são manifestados através da voz). É por isso que a ceifeira canta, mas sem razão (v. 13). Repare-se no duplo imperativo e na exclamação retórica, multiplicada até ao fim do texto, para exprimir a emotividade transtornada do poeta e a necessidade de que para ele se reveste a procura da felicidade – que na ceifeira significa inconsciência). A ceifeira parece ser feliz, mas a sua voz denuncia-a: há nela “o campo e a lida”, o rebaixamento do humano, o trabalho excessivo e certamente mal remunerado (temática a oscilar entre o neorrealismo e o existencialismo). Só que ela, porque não reflete, não tem consciência disso. E é assim que parece ser feliz, embora qualquer coisa nela (o canto) destoe da imagem de felicidade que dela se parece libertar. Reparemos como se revela no texto o ato de cantar da ceifeira: “Ela canta” (v. 1), “Canta,  e ceifa” (v. 3), “ela tem a cantar” o som (v. 8). Há uma gradação no modo de expressão do poeta. Ela não canta, ela “tem a cantar”. Não é verdadeiramente senhora do seu ato, age inconscientemente, está como que condenada a ser o que é. Quanto a si mesmo, o poeta confessa em si a submissão do sentimento à razão (como explicou em Autopsicografia), ao mesmo tempo que a mágoa de pensar (“O que em mim sente ‘stá pensando” – v. 14). Só que, se ela é feliz porque inconsciente, ele é infeliz porque consciente (pensa). Daí ele desejar (mais que apelo, como a frase imperativa parece querer mostrar, trata-se de um optativo) que ela derrame (verbo expressivo) dentro dele a sua voz (incerta, ondeando – vv. 15-16, que se ligam aos vv. 3-5) tal como é. É que a voz da ceifeira aparenta felicidade, embora não seja verdadeira felicidade, mas o pareça só. O poeta deseja poder transformar-se nela (“poder ser tu, sendo eu!” – v. 17: a procura desesperada da felicidade, do paraíso perdido da inocência, da simplicidade, da alegria), mas sem deixar de ser ele mesmo – ter a inconsciência que a caracteriza, embora mantendo a sua própria consciência. Ser inconsciente, mas sem deixar de ser consciente, é impossível. O poeta deseja ser feliz, só que felicidade não se coaduna com reflexão, pensamento, consciência, racionalidade. Daí essa impossibilidade ser geradora de uma boa parte da angústia que lhe oprime a alma, e que as apóstrofes que se seguem procuram exprimir (vv. 19-20): “Ó céu! / Ó campo! Ó canção!”. Elas constituem-se mais que tudo em grito, em ânsia de libertação, em paroxismo (notar as frases curtas,  o ritmo quebrado, a emotividade). O céu, o campo, a canção serão os três elementos que envolvem o instantâneo que serve de motivo ao poeta (uma ceifeira num dia luminoso a cantar enquanto trabalha). Por mais que a consciência (o conhecimento, o pensamento, a ciência – que geram responsabilidades) o faça infeliz, o poeta mostra-se empenhado nela e mantém o empenhamento em a procurar – mau grado a brevidade da vida: “A ciência / Pesa tanto e a vida é tão breve!” (vv. 20-21). Mesmo assim, ele gostaria de se libertar (tal como acima, v. 15, mais que o sentido imperativo, a gradação entrai, tornai, passai é constituída por optativos). É uma insistência mais, por parte do poeta, na inconsciência, se ela fosse possível. Só que o tom em que ele o manifesta (notar os  vv. 22-23, ligados pelo transporte, em que até a sintaxe o exprime) é angustiado e desiludido; é o tom de alguém que já se convenceu dessa impossibilidade.

O poeta desejaria que o céu, o campo, a canção lhe invadissem a alma, a transformassem em sombra (na sua sombra leve) – em sombra, porque assim não ocuparia espaço, sendo a sombra apenas resultado de um jogo de luz – e o levassem consigo, concluindo viagem (passai), acabando-lhe com o sofrimento. E a última quadra do texto é assim a manifestação do desejo (paradoxal em si mesmo, já que o poeta quer e não quer) do poeta face à dor de pensar que o atormenta. Em suma, a ceifeira é símbolo da inconsciência e da felicidade (da felicidade porque da inconsciência), enquanto o poeta submete o sentimento à razão, e por isso vive angustiado. É consciente, e por isso infeliz. Como anseia pela felicidade, desejaria ser inconsciente como a ceifeira, transformar-se nela, ser levado pela ambiência que a rodeia: o céu, o campo, a canção. Apesar das dificuldades que, em regra, os poemas de Fernando Pessoa levantam quanto  a uma divisão em partes (sempre importante quando se trata de uma abordagem textual feita a nível pedagógico-didático), o presente texto poderá dividir-se em duas partes – compreendendo a primeira as três primeiras estrofes e a segunda as três últimas. A primeira parte caracteriza-se pelo tom discursivo, com elementos do espaço exterior (o instantâneo acima referido), entremeados por manifestações da subjetividade do poeta, mas de um modo comedido, muito controlado. Predomina o presente do indicativo, nos tempos verbais, as frases do tipo declarativo, o tom objetivo (embora ele seja aparente já que os adjetivos e o discurso modalizante concorrem para o contradizer). A terceira estrofe prepara já o leitor para a 2.a parte. A 2.a parte caracteriza-se pelo tom emotivo, descontrolado, em que a subjetividade do poeta vem ao de cima e se impõe. Predominam as frases do tipo exclamativo e imperativo, com apóstrofes dispostas em anáfora (Ah… Ah… Ó… Ó… Ó…), o ritmo nervoso e rápido, descontrolado,  as frases curtas (algumas reduzidas ao mínimo, pelo recurso à elipse), as exclamativas retóricas, as construções paralelas e as repetições (canta, canta… – v. 13). Por todo o texto se encontram marcas habituais do Pessoa-Ortónimo, como as linhas temáticas referidas, a organização do poema ao gosto popular, aparentando simplicidade, em quadras, de versos octossilábicos isométricos, com rima cruzada (a b a b), ritmo e musicalidade adequados a cada instante do poema, construções lapidares e muito depuradas pela racionalidade, trocadilhos engenhosos e profundamente significativos.

SILVA, Lino Moreira da, 1989. Do Texto à Leitura (Metodologia da Abordagem Textual) Com a Aplicação à Obra de Fernando Pessoa. Porto: Porto Editora

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