As personagens n’Os Maias
As personagens d’Os Maias, tanto como as situações, os sentimentos, os conceitos, são
múltiplas peças dum grande jogo de contrastes, ora categóricos, violentos, ora ténues, de
simples cambiantes. Definem-se, num quadro de valores, por comparação. Trata-se, por
vezes, de expressões solidárias, embora não coincidentes, duma ampla realidade; outras
vezes, de elementos que pertencem a esferas distintas, se não opostas. Por exemplo: a educação
inglesa recebida por Carlos é sublinhada pelo contraste com a educação tradicional,
devota, piegas, que fora infligida ao pai, e com a educação, igualmente tradicional, dada ao
Eusebiozinho. Os amores de Carlos e Maria Eduarda têm uma elevação, uma qualidade, que
se torna mais sensível ao leitor pelo contraste com os amores entre o Ega e Raquel Cohen e
os amores entre Carlos e a Gouvarinho. Todos ilegítimos, situam-se, porém, numa escala
em que Carlos/Maria Eduarda ocupam o lugar cimeiro e Ega/Raquel o inferior. Quando o
marquês de Sousela observa, acerca de Maria Eduarda: “Em todo o caso, é um mulherão”,
Carlos, cuja sensibilidade é doutro nível, indigna-se: “Carlos achou a palavra odiosa” (p. 307).
Da estupidez do conde de Gouvarinho faria o leitor uma ideia menos justa se não fosse levado
a reclassificá-la pelo confronto com a estupidez ainda maior do Dr. Sousa Neto.
Quanto a Afonso, uma das figuras centrais, convirá rever, à luz das relações com outras
personagens (Carlos, Ega), o juízo que faz dele um paradigma moral, síntese das virtudes do
Portugal velho. Também Afonso está na interseção de pontos de vista que se compensam
ironicamente, incidindo uns sobre os outros; e tais pontos de vista são, em larga medida,
geracionais. É certo que os defeitos de Afonso são registados com indulgente simpatia; mas
nem por isso deixam de surgir como defeitos em contraste com algumas qualidades dos mais
novos. O calmo pundonor de Afonso (de facto, “aquela confiança tão nobre de Afonso da Maia
no orgulho patrício, nos brios da raça de seu filho”, p. 29, projeção do seu próprio pundonor)
merece a consideração de Vilaça. Mas, perante o filho endoidecido pela paixão, Afonso ganha
atitudes de pai tirano convencional: aparece “rígido e inexorável como a encarnação mesma da
honra doméstica” (p. 30), profere (e agora o ponto de vista é o de Maria Monforte) um “não
afrontoso de fidalgo puritano” (p. 33), alguns amigos de Pedro que frequentam a casa de
Arroios riem “daquela obstinação de pai gótico” (p. 35), e, quando a sociedade de Lisboa vai
cedendo e começa a dar-se com a “negreira”, a intransigência de Afonso torna-se um caso
insólito, um tanto desumano. Além disso, Afonso é, sem dúvida, um homem culto, de bom
gosto, lúcido, generoso, que dá esmolas, recebe bem, orna com requinte os seus palácios,
mas falta-lhe autoridade para incitar o neto ao trabalho: inativo, diletante, reconhecendo,
com um sorriso, não ser “um varão esforçado das idades heroicas” mas tão-só “um antepassado
bonacheirão que amava os seus livros, o conchego da sua poltrona, o seu whist ao canto do
fogão” (p. 12), esteve sempre arredada do seu espírito a hipótese de trabalhar […]. Afonso
apoia Carlos nos propósitos de transformar o país; não era, porém, com Afonso que uma
transformação coletiva teria sido possível. Já na sua mocidade as suas convicções políticas se
mostram inconsistentes, e grande o seu egoísmo. Provoca a santa indignação do pai lendo
Rousseau e Helvécio, recitando em lojas maçónicas odes ao Supremo Arquiteto do Universo,
e assim por diante. Mas bastam alguns meses de castigo, no desterro de Santa Olávia, para
regressar contrito, a pedir ao pai que o deixe ir para Inglaterra. E na Inglaterra, tanto quanto
sabemos, por completo esqueceu os ideais e lutas dos correligionários. “Durante os dias da
Abrilada estava ele nas corridas de Epson […], bem indiferente aos seus irmãos da Maçonaria”
(p. 15). O espetáculo da Lisboa miguelista irrita-o, incomoda-o. Faz alguma coisa para o
modificar? Não. Refugia-se de novo na Inglaterra, onde o encantam “os parques de luxo,
os copiosos confortos” (p. 14). […] O mole individualismo que vence Carlos estava-lhe na
massa do sangue; vinha-lhe do avô.
E em matéria de amor? Afonso, parece, nunca se apaixonou: apenas tem a vocação do pater
familias. Casa com uma filha do conde de Runa, “uma linda morena, mimosa e um pouco
adoentada” (p. 15), que lhe dá um filho. Depois de enviuvar, não se lhe conhecem amores,
qualquer ligação. A sua austeridade faz medo a Maria Eduarda, que pergunta a Carlos:
“– Teve paixões?” E Carlos responde: “– Não sei, talvez… Mas creio que o avô foi sempre um
puritano” (pp. 468-469). Do ponto de vista de Carlos, Afonso carece de compreensão: intolerante
em questões formais, fica insensível à grandeza dos impulsos, das paixões que, furiosamente,
rompem a crosta dos preconceitos. “Homem de outras eras, austero e puro, como
uma dessas fortes almas que nunca desfaleceram – o avô, nesta franca, viril, rasgada solução
dum amor inominável [a fuga para Itália], só veria libertinagem! Para ele nada significava o
esponsal natural das almas, acima e fora das ficções civis; e nunca compreenderia essa subtil
ideologia sentimental, com que eles [e neste caso, curiosamente, o ponto de vista do narrador
parece sobrepor-se ao de Carlos, submetendo-o a uma censura ética], com que eles, como
todos os transviados, procuravam azular o seu erro” (p. 542). Mais adiante, ouvimos Carlos
dizer ao Ega que “O avô nunca compreenderia os motivos complicados, fatais, iniludíveis,
que tinham arrastado Maria”, e que “Para perceber este caso […] seria necessário um espírito
mais dúctil, mais mundano que o do avô…” O Ega concorda: “– Sim, o velho Afonso é granítico…”
(p. 516).
Na ótica e conjunto d’Os Maias, será, portanto, Afonso um modelo que se propõe aos
contemporâneos? Não conduzirá antes o romance a uma hesitação irónica entre o puritanismo
de Afonso e o desregramento de Carlos? “Como síntese dramática”, ponderou Machado
da Rosa, “Os Maias são uma tragédia em três planos descendentes: o clássico (Afonso da
Maia), o romântico (Maria Eduarda), o realista (Carlos)”. Afirmação muito discutível. Perante
o romântico Carlos (na verdade, bem mais romântico que realista), fará Afonso figura
de clássico, pela sua saúde moral, pelo seu equilíbrio. Mas classicismo não é ausência de paixões,
é, sim, capacidade de as dominar, em tensão interior. Se a paixão ingovernável é o
excesso, a secura do puritanismo não pecará por defeito? O pensamento implícito n’Os
Maias é problemático, olha o verso e o reverso das coisas; a ironia queirosiana envolve a
consciência de que todo o objeto de reflexão é, pelo menos, bifronte, suscetível de ser encarado
de duas perspetivas válidas. Também Afonso está colocado sobre uma dupla vertente.
Em oposição ao velho Afonso, iluminando-se reciprocamente, vejamos Ega e Carlos, companheiros
de geração, amigos. Ega, esse compreende a situação de Carlos, vai até aos últimos
limites no afã de compreender. Melhor do que Carlos, encarnará no romance o realismo;
mesmo assim é, por temperamento, um romântico, já “muito sentimental” nos seus tempos de
Coimbra (p. 93). Tem delicadeza suficiente para respeitar o amor de Carlos, para lhe medir
a altura. Sentindo quanto o separa do Vilaça, considera este a pessoa indicada para desvelar a
Carlos o terrível segredo: “Não havia homem mais honesto, nem mais prático; e, pela mesma
mediocridade do seu espírito burguês, quem melhor para encarar aquela catástrofe, sem paixão
e sem nervo?” (p. 628). Ega, com efeito, vibra, horroriza-se, condói-se, não tem coragem
para “dizer tudo” ao amigo; não é um burguês (no sentido pejorativo do termo) e ainda
menos um medíocre. É capaz de imaginar com simpatia o terrível conflito em que Carlos se
debate, “sob o despotismo de uma paixão até aí legítima, e que numa hora amarga se tornara
de repente monstruosa, sem nada perder do seu encanto e da sua intensidade… Humano e
frágil, ele não pudera estacar naquele violento impulso de amor e de desejo, que o levava
como um vendaval!” (p. 664). Ega superioriza-se ao íntegro Afonso por esta compreensão das
teias do amor e do desejo; à falta de coro, é ele quem sublinha o trágico da história, a humanidade
de Carlos e a piedade que lhe é devida, como vítima do Fatum pela simples fraqueza
de amar.
Finalmente, quanto a Carlos, o juízo de Machado da Rosa parece-me demasiado severo […].
Carlos, segundo o comentador, carece do sentido da dignidade […]; ao invés de Pedro e de
Afonso, não tem coração (por isso estes morrem e Carlos sobrevive), o que tem é medo do avô;
“no final do romance, ao mesmo nível da sociedade que o gerou, só ele aparece, exatamente
igual a si próprio”. Ora uma leitura relativamente cuidadosa d’Os Maias deixa bem claro que,
não obstante egoísta, não obstante fraco de vontade, Carlos está a distância apreciável da sociedade
que o rodeia; alguns episódios põem em evidência certa delicadeza de sentimentos, por
exemplo: desiste de ser amante de Hermengarda quando vê o marido passar junto dele com
o filhinho pela mão (“Sentiu-se canalha em andar ali de cima do seu dog-cart, a preparar friamente
a vergonha e as lágrimas daquele pobre pai tão inofensivo no seu paletó coçado!”, p. 93);
faz tenções de enfrentar com dignidade a ligação com Maria Eduarda, iludindo-se ao pensar
que tanto ele como ela são “pessoas fortes, com o ânimo bastante resoluto, e o juízo bastante
seguro, para eles mesmos acharem o caminho da dignidade e da razão naquela catástrofe que
lhes desmantelava a existência” (p. 652); custa-lhe atormentar o avô por causa dos seus amores,
e a morte de Afonso desperta-lhe não medo mas remorsos, embrenhando-o numa “contemplação
dolorosa”: “E o seu desespero era que o avô assim tivesse partido para sempre, sem que
entre eles houvesse um adeus, uma doce palavra trocada” (p. 671). Ega viu melhor que Machado
da Rosa quanto havia de puro, de generoso, no amor de Carlos, de mistura com o ímpeto
carnal. Com a proibição do incesto e o afastamento definitivo, Carlos viverá para entreter
o tédio, entregar-se-á ao prazer, não mais terá capacidade de amar. Efetivamente, já não é o
mesmo. Falhou na vida. Em dez anos não lhe sucede nada, a não ser quebrar-se-lhe o faetonte
na estrada de Saint-Cloud (p. 713).
COELHO, Jacinto do Prado, 1976. Ao Contrário de Penélope. Lisboa: Bertrand (com supressões)
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